No vídeo deste post, Rodrigo Constantino compara os mortos pelo coronavírus aos mortos em acidentes de carro. Segundo ele, não devemos momentaneamente fechar o comércio não essencial e dizer às pessoas para ficarem em casa, nem que seja apenas em locais onde a pandemia ganha terreno, onde o vírus se espalha de modo descontrolado. Se não agimos assim em relação aos carros, por que o excesso de zelo em relação à pandemia de coronavírus? Sabemos que, em ambos os casos, dezenas de milhares morrerão. Temos que continuar a andar de carro, ainda que muitos morram. Temos que continuar a viver normalmente, ainda que muitos morram após se contaminarem pelo vírus. Simples assim.
Haver quem faça metáforas desonestas, comparações obtusas, analogias inconvenientes, não deve servir como proibição à retórica e ao uso de figuras de linguagem. Falácias de uns não depõem contra o uso da lógica. Pensamento asnático não depõe contra o uso do cérebro. Mas denunciemos os abusos.
Grosso modo, sabemos que umas 30 mil pessoas morrerão todos os anos no trânsito, no Brasil – número que pode ser reduzido, claro; o sistema de saúde está mais ou menos adaptado ao grande contingente de hospitalizados, afinal os acidentes de trânsito não aumentam exponencialmente, por contágio. Mas quantas teriam morrido na pandemia se tivéssemos apenas levado a vida normalmente, no máximo com isolamento vertical aliado ao uso de máscara e álcool gel? Quantas estariam vivas se tivéssemos feito muitas testagens aliadas a fortes quarentenas localizadas, onde a doença estivesse se disseminando mais? Quantas estariam vivas se tivesse havido união nacional em torno ao problema, enfrentamento ao invés de negação? Quanto está “bom”? 50 mil mortes? 200 mil? Como saberemos quando a contagem cessará? E se for no 1 milhão? E se for mais? É a vida? O sistema de saúde estará preparado? Bebês prematuros morrerão sem oxigênio, pessoas morrerão nas calçadas por falta de atendimento, seus corpos irão para aterros sanitários? Para quem nega que haja um problema, se o número de mortos for baixo tem-se a prova de que tudo foi alarmismo. Se for alto, tem-se a prova de que nada do que foi feito adiantou. Se o confinamento começa a fazer efeito, quem é contra aponta seu sucesso como prova de que não era necessário. E se ainda por cima a economia vai mal, tem-se a prova de que a medida desnecessária causou muitos males econômicos, além de ter atentado contra a liberdade de ir e vir. Ignora-se o cenário hipotético, já que não se dispõe de dados históricos e o exemplo internacional não importa, uma vez que os líderes mundiais ou não são tão inteligentes quanto o Guilherme Fiuza ou estão a serviço de uma causa oculta que quer o lockdown para que a economia seja destruída, sabe-se lá a troco de quê. Suicídio de lemingue, talvez.
Se fizéssemos uma comparação entre as mortes no trânsito e aquelas causadas pelo coronavírus, o cenário deveria ser bem diferente. Imaginemos que todos os carros em circulação têm um pequeno computador de bordo. Um vírus no sistema faz com que um carro acelere ou freie de repente, gire abruptamente o volante. Esse vírus digital é transmitido, para outro carro distante poucos metros, por Bluetooth, estando ele ligado ou não. O aumento dos carros infectados passa a ser exponencial. E, proporcionalmente, o número de mortes. Os hospitais estão lotados, pessoas com câncer e pneumonia morrem por falta de atendimento. Logicamente, passaremos a evitar engarrafamentos, estimularemos o uso de bicicletas, reduziremos os carros nas ruas, tentaremos implantar o home office, tudo isso até acharmos uma solução definitiva para o problema. O problema com os carros seria temporário, portanto, como o que enfrentamos com o coronavírus. Esta é uma comparação mais adequada.
O amor-próprio, o amor ao trabalho e à família têm também seus abusos. Encontraremos sempre aqueles que desligam o bom senso e o pensamento lógico de outrora em troca da pecúnia ou do cacife profissional que no fim das contas a fará fluir para seus bolsos. Depois não os conseguem mais ligar, tamanho é o estrago que aquilo, pensado para ser temporário, causa permanentemente no espírito. E ficam presos a posturas pregressas, sempre passíveis de serem evocadas na internet por adversários ávidos por acusá-los de incoerentes e vendidos; não mudarão para não dar armas a seus detratores. Assim, o melhor a fazer é escolher a “realidade” em que se quer viver e pronto. O importante é se ater a ela. Outras “realidades” devem ser negadas veementemente. Até mesmo a realidade, sem aspas, aquela que não está nem aí para o que dizem dela.
Eis um caso de “abusus non tollit usum”. Que haja comentaristas políticos internet afora. Mas que seus abusos sejam denunciados.